Introdução: No final de dezembro de 2019, a humanidade entrou em um novo capítulo marcado pelo surgimento de uma pandemia global que impactaria profundamente o mundo. O novo coronavírus (COVID-19) não foi apenas uma infecção viral, mas um fenômeno que alterou diversos aspectos da vida cotidiana e dos sistemas de saúde.No campo das cirurgias valvares cardíacas, a extensão dessas restrições permanece pouco explorada.
Métodos: Foram analisados dados retrospectivos de cirurgias cardíacas valvares realizadas entre janeiro de 2018 e julho de 2024, comparando volumes cirúrgicos, taxas de mortalidade, listas de espera e tipos de procedimentos (mitral, aórtico e combinado) entre períodos pandêmicos e não pandêmicos. Foram aplicadas análises estatísticas para avaliar variações no número de cirurgias e nas taxas de mortalidade, evidenciando o impacto da pandemia e a subsequente recuperação.
Resultados: No total, foram realizadas 3.909 cirurgias, com uma taxa média de mortalidade de 6,8%. Em 2020, o número de procedimentos sofreu uma redução de 54% em relação a 2019 (p < 0,001), resultando em uma perda acumulada de 818 cirurgias (21%) entre 2020 e 2022. A mortalidade aumentou 8,8% no mesmo período (p = 0,001), enquanto as cirurgias mitrais apresentaram a maior queda, com uma redução de 77,3% (p = 0,03). O pico de mortalidade cirúrgica ocorreu em 2020, e uma análise de regressão logística indicou que esse aumento esteve mais associado à contaminação intra-hospitalar por COVID-19 (p = 0,025) do que à maior gravidade dos pacientes operados, conforme avaliado pelo EuroSCORE (p = 0,100). A recuperação iniciou-se em 2022, com os volumes cirúrgicos atingindo níveis pré-pandemia em 2023. No entanto, a lista de espera aumentou 117% ao comparar o período pré-pandêmico com os períodos pandêmico e pós-pandêmico, permanecendo elevada.
Conclusão: A pandemia de COVID-19 levou a uma redução significativa de 21% no número de cirurgias valvares realizadas no centro de referência, acompanhada por um pico de mortalidade em 2020 e um aumento na lista de espera, impulsionado pelas complicações associadas à COVID-19 e pelo influxo de pacientes em estado crítico. Embora os volumes cirúrgicos tenham se recuperado completamente em 2023, a lista de espera permanece persistentemente elevada. Esse impacto, combinado com o aumento da mortalidade pós-operatória, ressalta a vulnerabilidade dos sistemas de saúde diante de crises sanitárias de grande escala.